sábado, 26 de dezembro de 2020

O Bom (?) Velhinho

Foto: Poster do filme "Silent Night - Deadly Night (1984)"

Caro Senhor Vermelho 
saiba que lhe desejo
um natal bem sucedido
mas tire-me dessa lista
nem perca tempo comigo
não creio mais em você

Seus presentes anuais
e palavras efêmeras
tão assaz convenientes
mas de aparente sinceridade 
aprisionaram-me à lenda
como criança demente

Restaram, sim, lembranças
da inocência e daqueles dias 
em que acreditei
que você existia
que era alguém bom
e que todo bem me faria

Na verdade você existe
mas de santo nada tem
continua com jeitinho,
parecendo bom velhinho,
alimentando a fantasia
de muita gente de bem...

domingo, 6 de dezembro de 2020

Idaho Particular


O que aqui escrevo
não serve para divulgação;
é apenas recurso de autorreflexão.
Desenterro palavras nunca ditas
ou guardadas em gavetas esquecidas.

Para as tardes de conversa,
reservo somente as palavras bonitas
que correm livres pelo sol das manhãs.

Os meus escritos são velhos band-aids
descartados à medida que as feridas se curam.
Revisito o que escrevo, à procura de mapas
para caminhos esquecidos;
lugares que não indico a mais ninguém...

Passagens secretas, becos escuros,
estradas de chão batido,
trilhas íngremes por onde passei.

Estes textos não servem para livros ou microfones,
são úmidos, tristes, salgados...
escondem cavernas, rios selvagens
e antigas casas abandonadas.

Escrevo o oposto do meu alegre discurso;
aqui deixo o resumo dos meus lutos,
das minhas dores,
dos não vividos amores...

Deixo tudo isto aqui... à mercê do julgamento
dos que vivem na superfície...
matéria incompreendida pelos que evitam
os subsolos da alma.

Sim, pode haver pedidos de socorro,
mas não uma existência depressiva.
Tudo ficará bem, no final.
Não! Aqui não há gatilhos suicidas.
Tudo ficará bem.

Aqui há somente um pouco de mim,
do que sonhei... 
e nada do que você conhecerá.

sábado, 24 de outubro de 2020

Hematêmese


Arrumo todas as fotografias cuidadosamente. Revivo um tempo que sangra.
Sinto na garganta o sal do meu mar interior. 

Me afogo

A jovem da foto olha fixamente para mim. Quase não me recordo dela.
Era feliz? Morreu cedo?

Morro

Retiro a poeira que cobria o teu rosto. Era sépia teu sorriso.
O meu, sempre cinza. As cores me fugiram cedo.

Resta apenas

O pálido vermelho do coração aberto e sua borbulhante sopa fria, 
temperada de urgências insatisfeitas.

Amarga 

Nossas fotos lado a lado, sequer combinam. Viro as páginas.
Mais de vinte anos se passaram.

A vida

Sonhos coagulados no prato. Coração em preto e branco.
Só a dor ainda é vermelha.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Caducifólias

Foto: Árvores decíduas da Noruega, extraída da Wikipedia

Nunca entendi o tempo.
Quando menos devia,
eu quis apressá-lo...
Disse-lhe: “corre!
Ele não me ouvia,
andava bem devagar 
como criança birrenta.
E eu só queria futuros,
viveres a frente...
não era feliz no presente

Uma vez tentei enganá-lo,
deixá-lo para trás esquecido.
Tentei fazer do meu jeito
o meu momento.
Mas o caminhante lento,
de passo arrastado,
me forçava a esperá-lo.
Ainda é cedo” sussurrava
com calma tamanha,
que me fazia chorar

Depois vi que era em vão.
Avançava páginas em branco
e escrevia lá adiante
minhas próprias histórias.
O tempo ia lentamente
desenhando no vazio
que eu deixava pra trás
me fazendo desacreditar
na metamorfose sufocada
entre as paredes do passado

Faltava sempre coerência
entre mim e o tempo
cansada, parava de caminhar
e ele ia embora na frente
o tempo passava por mim
eu não tentava alcançá-lo
sua poeira pairava sobre tudo
meus pés iam ficando gelados
eu me cobria de inércia
até ir sumindo, sumindo...

No silêncio do meu inverno
o gelo agarrou-se às raízes
derrubou-me folhas
secou-me os galhos...
Em mim não há ninhos
flores ou borboletas.
Sou inóspita.
O que restou é antigo,
é pretérito 
e é imperfeito...