quarta-feira, 16 de outubro de 2019

THX

Foto: Vibrante nº3, por Qvectors

Estivemos bem perto
do nosso desatino...
mas findou-se
e sabemos por quê
A raiz não vingou,
era imperfeita,
fugaz como gelo
que não suporta
um dia de verão.

Caro, estou bem
sem dramas...
assim foi melhor
éramos uma ilusão
que sumia na rua.
Tudo era um sonho
que não resistia 
ao sol da manhã.

Não me pergunte
se a dor valeu,
se lamentei o sim,
se ousaria outra vez.
Palavras novas
estão proibidas
após o ponto final.
Acabou-se a história.

As respostas
foram refugadas
junto com a quimera
do amor de outrora.
Meu amigo,
eu lhe disse
quis você comigo
até o fim, ou
até nunca mais.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Orfandade



Não soltem minhas mãos,
não me deixem só...
Sei que precisam partir
mas pergunto o por quê
esvaziamos a nossa casa,
fechamos os cômodos
e seguimos separadamente...
vocês indo em frente
e eu permanecendo aqui,
respirando lembranças

Da última vez que os vi,
apenas tive tempo
de abraçá-los 
e falar do meu amor
da enorme saudade
que agora me acompanha
por não ouvi-los mais
ou sequer vê-los de longe...
dói saber que assim será
até que os reencontre

Enquanto os aguardo,
sento-me à mesa...
eu e minhas ausências
eu e meu silêncio
eu e minha espera
a cada dia mais perto
da hora do reencontro
e ao regressarem, enfim,
não soltem mais minhas mãos
...desta vez para sempre...

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Misantropia


Foto: Leão (postada aqui) - Desconheço a autoria

Lamento não estar feliz
ofereço-te presença
mas nunca o coração
venho ao teu encontro
por conveniência ou obrigação
e aqui ficarei
por um tempo arrastado
de silenciosa expiação
desejando secretamente
abreviar tua companhia
não por aversão
mas por receio de ti

Desaprendi a habilidade
do encontro, do contato
não são todos os olhos
que digiro sem náusea
olhares que julgam
que aprisionam
que sondam e espionam
olhares que não vêem
senão a si mesmos
olhares que se desviam
que caçoam e ameaçam
olhares impiedosos e frios

Esses me assustam
me violentam e debilitam
com eles me acabrunho
e retorno aos pedaços...
vejo meus frágeis tapumes
quase sempre derrubados

O bom destino entretanto
em momentos piedosos
me traz olhares clementes
são poucos... são raros
olhos que aguardam convite
e respeitam limites
olhos que se orvalham
que acolhem e encorajam
olhos que me sustentam
olhos que me ensinam
que me enxergam genuína
e não me desrespeitam

Esses me resgatam
matam um pouco da sede...
com eles me abrando
e não me percebo invadida
retorno e permaneço
pessoa inteira e completa

Desculpe-me mesmo
por preferir a fuga
por não pedir ajuda
por fingir viver bem
com a minha solidão
por não saber fincar cercas
por desconhecer a arte
de misturar o não ao licor
na dose certa
 sem estragar-lhe o sabor
talvez um dia eu consiga
e abra a varanda pra vida

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Metamorphosis

Foto: Metamorphosis, por Yolanda García

I
É de mim que tu falas
sou teu assunto preferido
escreves sobre o que penso
descreves coisas que vi
mas tu és uma idiota
se crês que somos duas...
dividimos a mesma cela
as mesmas células
embora tu penses
que me abandonaste
que fiquei para trás
eu sou o teu universo
tua única história
suprema testemunha
de quem hoje tu és

II
Não sou a mulher ao lado
sou tua última companhia
não sou reflexo de espelhos
nem me escondo atrás de portas
eu vivo em ti
e a dor que me escraviza
é tua também
os medos que me castigam
trespassaram teu corpo e o meu
não podes te separar de mim
e a ti não posso perdoar
por seres agora o que és
mas se eu pudesse
teria me livrado de ti
se eu soubesse que tu
logo tu
me paralisarias...

III
De nós duas
(tratemos assim se preferes)
fui a melhor parte
 alegre e ensolarada
eu caia, mas levantava
e quando judiada, cantava
contrariando a tudo
eu me acreditava
eu não fui tua larva
eu me via borboleta
mas o chão duro e seco
e teus inúmeros equívocos
nos conservaram lagarta
o tempo nos tortura
 como a um verme cansado
perdemos as asas
pelo teu medo da altura

IV
E assim não voamos
não visitamos jardins
nem paraísos dourados
e eu sei
 que sentes falta de mim
que me procuras por dentro
Mas de ti tenho raiva!
e até hoje não entendo
tuas tantas amarras
tuas grades, tuas teias
 esmurrei em vão as paredes
até sangrarem-me os punhos
neste desumano casulo
que aprisionou a crisálida
retirando de mim
os sonhos
 a beleza
e o direito de florescer em ti


sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Imago

Foto: Desconheço a autoria. Obtida na página @Whitephotosblack

É preciso esquecer
a menina do passado
e olhar para a mulher
que mora ao lado

é sobre ela que cai a chuva
é ela que acena e clama
é dela o grito que assusta
e o distante pedido de ajuda

caminha descalça, agora
a que outrora usou saltos
não são retas suas pegadas
nem levam a lugar algum

seu curto e instável pisar
só quebra o silêncio
pelo riscar da vertigem
 tateada nas paredes da vida

não tem sonhos, não tem nada
a coitada bem pouco espera
portanto, se alguém a vir
fale um pouco com ela

seus amigos se foram
partiram seu pai e sua mãe
não lhe sobraram sequer paixões
apenas o que se chama de medo

a mulher ao lado
faz tempo não se (re)conhece
não recebe abraço ou carinho
suas lágrimas secaram

a mulher ao lado
aos poucos envelhece
não encanta a mais ninguém
não engana o seu riso forçado

e pessoa  nenhuma se interessa
pelas opiniões e verdades
daquela mulher
que não traz novidades

a mulher ao lado 
não coleciona, não soma
nada mais nasce dela...
está vestida de ausência

ela deixou-se ir sumindo
a começar pela pessoa
que se via pelos espelhos
e hoje é foto no fundo do armário

a mulher ao lado 
não tem mais histórias 
o acervo de seu ignorado museu
deteriorou-se junto com ela

portanto, se alguém a vir
diga-lhe que pode voar
pois ela nunca usou suas asas
mas agora necessita partir