quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Agudos


Foto: Lonely Man and Lonely Tree, de Raaed MJ


Já não consigo gritar,
nem esmurrar paredes.
Como quem se acostumou à dor,
meu pranto não tem murmúrios;
nada além da certeza da perda
e uma impotente espera
que finda em laços desfeitos
e mãos amadas soltas em adeus.

Um dia olhei a realidade de frente
e compreendi nada mais restar
que resignação com as fases da vida. 

Para uma dor de tal tamanho
não há alívio ou consolo;
não há sequer forma de externá-la
neste mundo repleto de positividade.
Engulo as palavras ácidas que ouço, 
temperadas com sangue e veneno;
recebo no corpo os fortes golpes
que me marcam e retalham a carne.

Vou ao chão e não consigo levantar;
não me restou força ou esperança,
apenas miséria e uma pessoa em pedaços.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Amélie




Foto: The Moon and Me, de Rafel Bestard

Voltarias no sábado
arrumei nossa casa
mas tu não vieste

Então te aguardei na terça
mas um dia antes
partiste para longe

Ficou frio nosso cantinho
ocupado pelo silêncio
e pelas tuas lembranças

Eu sei... tantas vezes
te deixei me esperando
sem saberes se retornaria

Hoje te compreendo
e te peço perdão

Nas minhas inúmeras idas
não imaginei 
a dor que sentias

Será que tu conseguiste
perceber o quanto te amei?

Peço-te que lembres
que eu sempre voltei
que nunca me fui para sempre

Mas tu me abandonaste
em definitivo
arrancaste raiz, revolveste o chão

E eu estou aqui
padecendo da dor que padecias

Sem saber hora ou dia
assim como tu não sabias

Choro com tua ausência
sufoco com a dor da saudade

É insuportável a incerteza
do tempo lá fora, tão longe...

Eu só queria sentir-te 
ao meu lado novamente

Não te vás sem mim
Não me esqueças 
Não demores

Agora sou eu quem te espera


💗25-06-2010
💔25-09-2023

(Postagem originalmente publicada em 27/09/2023, às 10h03)

terça-feira, 9 de maio de 2023

Meus Corvos


Foto: As the Crow Dies, de Midnight-Digital


Daqueles dias que a gente
amanhece vazio
se sentindo sozinho
como se o universo
eclipsasse toda a luz
e vestisse um tipo
qualquer de tristeza.

Vem um frio diferente
lá do fundo do peito
uma voz miúda e chorosa
cantando uma velha canção.

Aquela saudade doída
dos que moram na rua
e um vento que arranca
pétala a pétala,
cochichando pra rosa
que tudo acabou.

sábado, 18 de março de 2023

Foto: Star Hug, de Tim Robberts


Num breve abraço
todo o meu coração
preencheu-se
por palavras ditas 
em profundo silêncio,
no momento em que
teu peito buscou
o meu

Sem máscaras,
o enlace dos braços
muitas verdades
reconheceu

A vida que nos
aparta
insiste em nos
reunir
neste fio de prata,
para um último
abraço

Quando de tua
boca escapa
o 'meu amor'
que alaga
o mundo inteiro

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Desertos

Foto: So Lonely, publicada aqui

A luz da manhã escancara e revela
os espaços vazios
lá, onde um dia houve alegria
agora, as cinzas preenchem os dias
e ventos frios abraçam as noites

de um peito ferido
resta o remorso dos erros
e um rosto marcado
expõe suas culpas e falhas
nas janelas do tempo,
sobra impresso o passado
na saudade de tantos momentos

porém agora
nada há de ser feito
o vento varreu o chão
apagou histórias e pegadas
e, do solo seco e rachado
não brotam riachos
nem vingam sementes
o futuro é desconhecido...
um imenso deserto
a trilhar calmamente

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Silêncio


Foto: Silence, de Saeed Razzaghi

Tu não o sabes e assim espero que tudo permaneça: no silêncio mais que absoluto... mas agora andas comigo, ao lado meu, aonde quer que eu vá.
Conheces templos, mares e montanhas a cada novo raiar dos dias.
Nos crepúsculos, enquanto te deitas sobre a relva úmida, eu te digo estrelas.
Sentamo-nos calados por horas, todos os fins de tarde, e tu não percebes que nossas mãos se entrelaçam.
É no teu silêncio que vivo.
Dele surgi.
Durante as noites jogo estórias ao vento, para que alegrem teus sonhos. E bailo sob os luares de maio, para que te enchas de júbilo. 
Prefiro que não descubras quem te acaricia durante as frias madrugadas, quem te furta dos lábios um beijo ao alvorecer e, de teu corpo, anseia por um abraço.
É no meu silêncio que vivo.
Selo meu destino neste mudo caminhar por acreditar que, um dia me encontrando, não irás desejar minha companhia tanto quanto eu a tua.
E, assim, não viverei mais.

Texto revisto.
Inicialmente publicado em 05 AGO 2003.

sábado, 26 de dezembro de 2020

O Bom (?) Velhinho

Foto: Poster do filme "Silent Night - Deadly Night (1984)"

Caro Senhor Vermelho 
saiba que lhe desejo
um natal bem sucedido
mas tire-me dessa lista
nem perca tempo comigo
não creio mais em você

Seus presentes anuais
e palavras efêmeras
tão assaz convenientes
mas de aparente sinceridade 
aprisionaram-me à lenda
como criança demente

Restaram, sim, lembranças
da inocência e daqueles dias 
em que acreditei
que você existia
que era alguém bom
e que todo bem me faria

Na verdade você existe
mas de santo nada tem
continua com jeitinho,
parecendo bom velhinho,
alimentando a fantasia
de muita gente de bem...

domingo, 6 de dezembro de 2020

Idaho Particular


O que aqui escrevo
não serve para divulgação;
é apenas recurso de autorreflexão.
Desenterro palavras nunca ditas
ou guardadas em gavetas esquecidas.

Para as tardes de conversa,
reservo somente as palavras bonitas
que correm livres pelo sol das manhãs.

Os meus escritos são velhos band-aids
descartados à medida que as feridas se curam.
Revisito o que escrevo, à procura de mapas
para caminhos esquecidos;
lugares que não indico a mais ninguém...

Passagens secretas, becos escuros,
estradas de chão batido,
trilhas íngremes por onde passei.

Estes textos não servem para livros ou microfones,
são úmidos, tristes, salgados...
escondem cavernas, rios selvagens
e antigas casas abandonadas.

Escrevo o oposto do meu alegre discurso;
aqui deixo o resumo dos meus lutos,
das minhas dores,
dos não vividos amores...

Deixo tudo isto aqui... à mercê do julgamento
dos que vivem na superfície...
matéria incompreendida pelos que evitam
os subsolos da alma.

Sim, pode haver pedidos de socorro,
mas não uma existência depressiva.
Tudo ficará bem, no final.
Não! Aqui não há gatilhos suicidas.
Tudo ficará bem.

Aqui há somente um pouco de mim,
do que sonhei... 
e nada do que você conhecerá.

sábado, 24 de outubro de 2020

Hematêmese


Arrumo todas as fotografias cuidadosamente. Revivo um tempo que sangra.
Sinto na garganta o sal do meu mar interior. 

Me afogo

A jovem da foto olha fixamente para mim. Quase não me recordo dela.
Era feliz? Morreu cedo?

Morro

Retiro a poeira que cobria o teu rosto. Era sépia teu sorriso.
O meu, sempre cinza. As cores me fugiram cedo.

Resta apenas

O pálido vermelho do coração aberto e sua borbulhante sopa fria, 
temperada de urgências insatisfeitas.

Amarga 

Nossas fotos lado a lado, sequer combinam. Viro as páginas.
Mais de vinte anos se passaram.

A vida

Sonhos coagulados no prato. Coração em preto e branco.
Só a dor ainda é vermelha.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Caducifólias

Foto: Árvores decíduas da Noruega, extraída da Wikipedia

Nunca entendi o tempo.
Quando menos devia,
eu quis apressá-lo...
Disse-lhe: “corre!
Ele não me ouvia,
andava bem devagar 
como criança birrenta.
E eu só queria futuros,
viveres a frente...
não era feliz no presente

Uma vez tentei enganá-lo,
deixá-lo para trás esquecido.
Tentei fazer do meu jeito
o meu momento.
Mas o caminhante lento,
de passo arrastado,
me forçava a esperá-lo.
Ainda é cedo” sussurrava
com calma tamanha,
que me fazia chorar

Depois vi que era em vão.
Avançava páginas em branco
e escrevia lá adiante
minhas próprias histórias.
O tempo ia lentamente
desenhando no vazio
que eu deixava pra trás
me fazendo desacreditar
na metamorfose sufocada
entre as paredes do passado

Faltava sempre coerência
entre mim e o tempo
cansada, parava de caminhar
e ele ia embora na frente
o tempo passava por mim
eu não tentava alcançá-lo
sua poeira pairava sobre tudo
meus pés iam ficando gelados
eu me cobria de inércia
até ir sumindo, sumindo...

No silêncio do meu inverno
o gelo agarrou-se às raízes
derrubou-me folhas
secou-me os galhos...
Em mim não há ninhos
flores ou borboletas.
Sou inóspita.
O que restou é antigo,
é pretérito 
e é imperfeito...