sábado, 29 de outubro de 2005

Nós

Saio de mim para experimentar de vez em quando esse delírio que é ser nós. Esse súbito eclipse, exercício do improvável, desprovido de caminhos a trilhar, de promessas a cumprir.

A soma do eu e do tu: um nós permeado de silêncios, de dúvidas e de incertezas. Um nós que desafia toda a racionalidade e a poesia, um nós cheio de espaços vazios que se preenchem inexplicavelmente quando nossos olhares se encontram. Um nós breve e transbordante, escrito pelos espaços anônimos, em momentos carentes de testemunhos.

Um nós que vive e morrerá sem que o mundo o eternize e o transforme em melodia, um nós que à luz do dia parece fadado a todo tipo de infortúnios, mas que no aconchego de nossas almas parece ser o paraíso perdido, uma ilha solitária que somente eu e tu conhecemos, onde barcos não aportam, onde nada mais acontece a não ser a concretização do que parecia impossível.


Foto: Jodie Coston

terça-feira, 18 de outubro de 2005

Sem Vida


Foto: Imagem do Google, desconheço a autoria.


Se outrora tivessem me dito, eu provavelmente não teria acreditado, mas o dia chegou, em que olhei teu rosto e senti apenas melancolia.
Não mais reconheci aquele que me trazia a vida, os sóis espalmados nas mãos e as cores refletidas nos lábios, mas um outro: um desconhecido, inexpressivo, morto...
Querido meu, nunca imaginei que tão cedo deitaria flores à grama e ergueria para ti uma lápide em meu jardim.
Aqui estou eu: Aquela que te amou. Vim dizer-te hoje que, para mim, já não vives.
A maior incoerência não é comunicar-te a morte, mas sim descobrir que na verdade nunca exististe de fato, visto que eras fruto das minhas idealizações.
Sim, era eu quem te mantinha vivo no meu mundo, e somente eu poderia tirar-te a vida.
Vejo-te agora inofensivo, patético. Enquanto estavas vivo, me assombraste e me causaste muito mais dores do que agora, morto. Leva contigo nossa história, ela não me serve e não me agrada. Guardo como relíquia, umas poucas lembranças dos sonhos de uma vida que nunca tivemos.
Sim, morreste... Mas não foi teu o sofrimento.
Fui eu quem sentiu na carne a dor lenta da tua morte.
Foi meu o castigo de saber que o teu coração não mais batia por mim.
Foi meu o tormento de tocar tua pele e não mais sentir o calor que dela emanava.
Foi minha alma que se apagou em luto.
Foram meus olhos que se turvaram numa cegueira penitente.
Aqui, a teus pés, jaz toda a minha vida.
E tu agora, apenas descansas em paz...

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Fraqueza

Instante - João Vasco

Queria saber que poder exerces sobre mim.
Não vou mentir dizendo que te quero, não posso pensar que te admiro, mas me dominas. Transformas meu arquitetado desinteresse em autêntico fascínio, e as horas que seriam tranqüilas transformam-se em incômodos, em lascivas agonias, em cenas mentais que desenho num exercício idílico.
Queria controlar a rebeldia que me percorre o corpo quando tão confiante te aproximas, como se soubesses da reviravolta que desencadeias em todas as minhas convicções.
Não me canso de voltar os olhos para teus defeitos, de usar a razão para pontuar nossas incontáveis diferenças, mas honestamente, não sei que opções me restam para escapar de ti e não sofrer mais, para me afastar dos ímpetos febris de correr para teus braços.
Não adianta partir, pois me encontras, num incessante jogo de sadismo.
Me entrego a ti então, desesperadamente... com essa fraqueza que me constrange.

Parto


Foto: Imagem do Google, desconheço a autoria.


Quero nascer, brotar... Abandonar este ventre onde não penetra a claridade, esta membrana que me separa do mundo e tolhe meus movimentos.
Quero sentir que foi rompido o cordão que me alimenta e me amarra a uma única fonte de vida e de esperança.
Não quero fazer parte de nada, não quero pertencer a ninguém, não quero que me escolham um nome ou que me cubram a pele. Apenas quero que me toquem com carinho, que me abracem, que me aceitem na forma exata que eu tiver.
Aqui no vazio lado de dentro, ninguém percebe as súplicas mudas espalhadas nas minhas íris lacradas. Eu só quero dizer para o mundo o quanto preciso de amor.
Quero nascer, para que me olhem nos olhos, para que me ouçam os gritos, para que eu aprenda finalmente a difícil arte de conviver.
Enquanto chuto as entranhas do meu cárcere, enquanto me falta o ar e o espaço, reviro-me em minhas ânsias e procuras, mas nada encontro além de mim.
Aqui dentro não tenho história, não tenho lembranças... Aqui existo mas não tenho vida.
Quero sentir meu corpo pulsar, quero estender minhas mãos e encontrar uma flor ou um espinho, o amor ou a dor da incerteza. Não importa...
Quero aprender a levantar, mesmo sabendo que antes eu preciso cair.
Na hora do parto beijarei a mão que me trouxer para a luz,
ainda que ela segure uma faca e faça cortes no meu mundo, ainda que me deixe na boca um certo gosto de sangue.